ESCOLA
ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO AREAL
LÍNGUA PORTUGUESA 7º
ANO
INTERPRETAÇÃO DE
TEXTO
O Primeiro amor
Numa noite eu estava no clube,
esperando meus pais terminarem uma conversa, quando ouvi no ginásio esportivo o
barulho de uma bola batendo no chão pá pá pá sem parar. Subi os degraus, e fui
até o alto da arquibancada deserta.
Na quadra de basquete um rapaz
treinava, sozinho. Ele era alto e magro, cabelos pretos, sobrancelhas grossas,
olhos escuros. Estava de uniforme esportivo vermelho.
Ele sentiu a minha chegada, parou
um instante de correr, deu uma olhada rápida na minha direção, secou o suor da
testa com a manga da jaqueta e continuou seu treino. Quando ele se virou de
costas, vi na jaqueta o escudo do time que tinha vindo de fora para competir com
o time do nosso clube. Sentei no último degrau, numa parte meio escura, e
fiquei olhando o jogador.
Ele corria, batendo a bola no
chão, pá pá pá levantando a bola dessa maneira até perto da cesta, ali ele dava
um salto, levantava o braço, segurando a bola, e às vezes dava um salto bem
alto, às vezes hesitava e desistia. Sempre recomeçava com a mesma disposição e
velocidade a jogada. Dava para perceber que ele já tinha feito aquilo mais de
mil vezes. Senti que estava se exibindo para a moça magra, de cabelos pretos e
compridos, que o assistia do escuro, parada, que era eu. Parecia que tinha se
criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater fortemente, ao
pensar nesse fio.
Percebi que alguma coisa estava
acontecendo dentro de mim. Parecia que um líquido quente corria por todo o meu
corpo, e se derramava, e fiquei tão inquieta que dei um salto, me levantei de
um salto, para ir embora, mas vi que o jogador perdeu o controle da bola,
parou, e olhou para mim. Fiquei paralisada, ali em pé, pulsando e suando.
Num instante ele tirou a jaqueta,
e vi seus braços compridos e fortes, que eram apenas braços, eu conhecia muitos
braços, os braços de papai, os braços de um ator, mas aqueles braços se
desenharam na minha cabeça de uma maneira diferente, parecia que tinham alma,
vida própria, atração. E o jogador voltou a jogar, agora com mais velocidade,
mais emprenho, como se quisesse me prender ali, e ele parecia de repente
cercado de fogo e luz, como se fosse um sonho, minha respiração ficou difícil,
meus ouvidos zuniam, e percebi que a buzina que tocava lá fora sem parar era do
carro de meu pai, e saí correndo, desci as escadas, cruzei o gramado,
atravessei a rua escura, abri a porta, entrei no carro, pá.
Minha mãe perguntou o que tinha
acontecido, por que eu estava tão agitada, o que eu tinah visto que me assustou
tanto? Nada, eu disse.
Sozinha, no banco de trás do
carro, eu olhava a paisagem do lago, do mato, da lua que brilhava no céu e se
refletia na água, que era a mesma paisagem de sempre, do caminho de volta ao
clube para casa à noite, mas havia alguma coisa diferente naquela paisagem,
lobos nas sombras, ruídos, ameaças, frutas de sabor estranho, ela me convidava
a entrar, e eu me vi correndo no mato, desabalada como se fugisse, enquanto
ouvia as batidas da bola na quadra batendo batendo pá pá pá repetidamente, e eu
chegava à beira do lago, e me jogava na água prateada, e pensava na prova de
matemática amanhã e u não tinha estudado a matéria e ia precisar aguar o
gramado pá pá pá e as minhas meias preferidas estavam sujas e eu não gostava de
ovo cru e eu ia ter aula de italiano e eu tinha ido mal na expressão oral e o
disco ainda não tinha chegado e pensava nessas coisas prosaicas mas nada tirava
de meu corpo a sensação estranha que eu sentia, pá pá pá ouvia meu coração a
bater também, e via a imagem do jogador treinando na quadra, debaixo de uma luz
que iluminava apenas ele, tudo escuro em volta, e a cada vez eu via seu rosto
mais perto, mais perto, até que ele ficou tão grande que levei um susto, essa
menina está tão quieta, dizia mamãe, e continuei quieta na hora do jantar,
comi pouco, pouquíssimo, deixei até
mesmo a sobremesa sem tocar, deitei na cama e não consegui dormir, rolava de um
lado para outro, agarrava o travesseiro, via o jogador na parede escura, nas
frestas da persiana, ouvia a bola batendo na quadra batendo no meu peito
fechava os olhos e via a imagem do jogador dentro da minha cabeça como se
tivesse sido marcada a fogo, a luz, como se fosse um filme se repetindo e o
barulho da bola na quadra, os braços dele me abraçavam, as persianas deixaram
entrar aos poucos os raios daquela lua cheia do lago, e ele era aquela luz e
era o silêncio da noite era o quarto e cada estrela, eu via o rosto dele e
pensava, como podia estar vendo o rosto dele? Devia ser um rosto imaginado, não
podia ser o seu rosto verdadeiro, o que estava acontecendo comigo? Via sua face
e sentia ali a existência de algum mistério, o que era aquele jogador? Não era
ele, era o que acontecia dentro de mim, o que ele tinha feito acontecer, como
se tivesse me empurrando num precipício, eu guiada por outra força, como se não
fosse mais eu, mas a força da vida, lutando contra minha força, e eu me deixava
arrastar, sem nenhuma dúvida, mesmo sem saber nada do que podia acontecer comigo,
quem era ele, se eu ao menos soubesse o nome dele, e fiquei olhando a noite
inteira para ele dentro de minha memória jogando jogando pá pá pá sem precisar
saber nada dele, só sentindo aquele movimento dentro de mim e pá pá os cabelos
pretos os braços tudo era tão macio ele olhou para mim os olhos pretos dele a
luz nos seus cabelos de fogo ele se apaixonou por mim ele parou de jogar e me
olhou e me viu ele se apaixonou por mim, era isso, eu me apaixonei por ele, e
ele por mim e eu por ele e quando amanheceu eu ainda estava apaixonada, ah
sonâmbula, eu tinha acordado e sentia maior vontade viver, ir à escola, chegar
o outro domingo, comi ovo cru sem sentir nojo e fui para a escola tonta de
paixão, eu via o jogador no asfalto que eu pisava, via o jogador no bico do meu
sapato no portão da escola no tronco da árvore na saia xadrez das meninas no
rosto dos meninos, via o jogador no caderno no pó do giz e no quadro-negro pá
pá pá fazia fantasias e eu via o jogador jogando uma partida eu no meio da
multidão e ele parava no meio do jogo e olhava para mim e ele estava numa festa
no clube e passava ao meu lado tão perto de mim que eu sentia o calor da sua
pele e ele não me via, ele passava perto de mim e sorria para mim, ele tirava
para dançar ele dançava com outra menina abraçado ele casava com outra menina e
eu chorava ele casava comigo ele vinha ser professor na minha escola ele batia
o carro no nosso e me levava no colo até o hospital, ele me chamava para fugir
no seu barco à vela ele tinha um avião e pilotava e jogava milhares de rosas
sobre a minha casa ele batia na janela do meu quarto ele me beijava os lábios
ele me levava ao cinema e segurava a minha mão ele passava na frente da minha
varanda e me olhava ele vinha de noite namorar ele me pedia em casamento ele
mergulhava comigo nas águas do lago ele me dava um filho ele me beijava os
lábios segurava a minha mão me levava a voar sobre os telhados, passei dias e
dias assim pensando nele sem um instante de descanso, achei que estava ficando
louca mas adorava me sentir assim, sem prestar atenção nas aulas, sentindo
beijos nos meus lábios e calor no meu corpo cheguei a ter febre ele não saía da
minha cabeça pá pá pá beijo nos lábios eu lia os jornais inteiros em busca de
uma notícia e só queria ir ao clube ao clube ao clube e ia à quadra vazia e
escura mas ele não estava mais lá, e em lugar nenhum, e ninguém sabia dizer
quem tinha treinado na quadra na noite do domingo e ele nunca se apagava de
minha memória pá pá pá e tantos anos se passaram e nunca o esqueci nem deixei
de sentir o que ele me fez sentir, pela primeira vez, o amor.
MIRANDA, Ana. Heloisa (org). De primeira viagem. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 13-17.
EXERCÍCIOS
1. Do
que se trata o texto que você acabou de ler?
2. Duas
personagens recebem destaque no texto.
a)
Quem são?
b)
Qual delas está narrando os acontecimentos?
c)
O texto é uma história real ou ficcional?
Explique sua resposta.
3. O
narrador conta algo que:
a)
Está acontecendo no presente
b)
Aconteceu num passado bem próximo
c)
Aconteceu num passado bem distante
d) Acontecerá num futuro bem próximo?
Encontre no texto trecho ou expressões que confirmem
sua resposta.
4. Como
você sintetizaria:
a)
Os acontecimentos da narrativa?
b)
As emoções da personagem?
5. Você
diria que nesse texto há mais destaque para os acontecimentos ou para as
emoções? Explique:
6. Considerando
sua resposta à questão anterior, você acha que a escolha que a autora fez sobre
quem narraria a história ajudou a construir o texto com esse destaque?
7. Releia
o trecho a seguir:
“Parecia que
tinha se criado um fio invisível entre nós. E meu coração começou a bater
fortemente, ao pensar nesse fio.”
O que seria esse
“fio invisível” criado entre as personagens, segundo o narrador.”
8. Que
reação do garoto é descrita pelo narrador para sinalizar que ele também sentiu
algo pela garota?
9. Você
acredita que essa reação do garoto é suficiente para afirmarmos que ele se
interessou por ela? Explique.
10. Leia
novamente:
“Num instante
ele tirou a jaqueta, e vi seus braços compridos e fortes, que eram apenas
braços, eu conhecia muitos braços, tinha visto diversos tipos de braços, mas
aqueles braços se desenharam na minha cabeça de uma maneira diferente...”
O Narrador diz
que os braços do jogador eram “apenas braços”, mas que “se desenharam” em sua
cabeça de “uma maneira diferente”. Por quê?
11. O
que você achou do final do relato? Situações como essa podem de fato acontecer?
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LÍNGUA
PORTUGUESA – 7º ANO
A
GRAMÁTICA NO TEXTO
EXERCÍCIOS
1.
Durante a narrativa, a personagem principal por
várias vezes faz uso das sequências pá pá pá.
Quais os efeitos de sentido que podem ter sido produzidos por essas
sequências em cada uma das diferentes situações em que foram usadas.
2.
Que diferença você vê entre o último parágrafo e
os parágrafos anteriores? Observe o tamanho, a pontuação, o tema abordado e
comente essas diferenças.
3.
Lendo o último parágrafo que ideias podemos ter
a respeito das emoções da personagem e que marcas escritas no texto reforçam seu
estado emocional?
4.
Observe o trecho abaixo:
Sozinha, no banco de trás do carro, eu olhava a
paisagem do lago, do mato, da lua que brilhava no céu e se refletia na
água,[...], e
eu me vi correndo no mato, desabalada como se fugisse, enquanto
ouvia as batidas da bola na quadra batendo batendo pá pá pá repetidamente, e eu
chegava à beira do lago, e me jogava na água prateada, e
pensava na prova de matemática amanhã e eu não tinha estudado a matéria e ia
precisar aguar o gramado pá pá pá e as minhas meias preferidas estavam sujas e eu
não gostava de ovo cru e eu ia ter aula de italiano e eu
tinha ido mal na expressão oral e o disco ainda não tinha chegado e
pensava nessas coisas prosaicas.
a)
Qual a função e o significado dessa conjunção
nesse trecho do texto?
b)
Que efeito de sentido a repetição dessa
conjunção produz, considerando a situação narrativa?
c)
No trecho a seguir o pronome ele é repetido
várias vezes. Nos textos em geral, não é aconselhável que haja repetição de
palavras tão próximas umas das outras, mas aqui essa repetição é proposital.
Observe:
“e eu via o jogador jogando uma partida eu no meio da
multidão e ele
parava no meio do jogo e olhava para mim e ele estava numa festa no clube e
passava ao meu lado tão perto de mim que eu sentia o calor da sua pele e ele
não me via, ele
passava perto de mim e sorria para mim, ele tirava para dançar ele dançava
com outra menina abraçado ele casava com outra menina e eu chorava”
a)
A repetição desse pronome chama a atenção do
leitor para a importância que a menina dá ao garoto nas histórias que fantasia.
Por que ela usa tantas vezes o mesmo pronome?